LI E GOSTEI: OS CARCEREIROS

CAPA OS CARCEREIROS

O TEMPO QUE PASSEI NO CARANDIRU

“ Sem o domínio dos mesmos códigos, não há diálogo possível “.

Drauzio Varella

Não se assustem: não sou ex-presidiário.
Mas passei meus últimos dez dias conhecendo a realidade de agentes penitenciários ao lado do Dr. Drauzio Varella que diz: “Depois de 23 anos frequentando cadeias, não faz sentido especular como eu seria sem ter vivido essa experiência; o homem é o conjunto dos acontecimentos armazenados em sua memória e daqueles que relegou ao esquecimento”.
E eu digo: depois de ler as 226 páginas de Os Carcereiros, não faz sentido especular como eu seria sem ter lido/vivido essa experiência de uma leitura que me levou a um sistema carcerário que obedece leis e códigos de conduta próprios, em que um tênue equilíbrio de forças mantem a ordem entre os dois lados das grades. De um lado os presos, frequentemente apinhados em condições subumanas, esquecidos pelo poder público. De outro, os agentes responsáveis por vigiá-los.
Não ler Os Carcereiros — usando as palavras do autor — seria passar o resto de minha no convívio exclusivo com pessoas da mesma classe social e com valores semelhantes aos meus, sem a oportunidade de me deparar com o contraditório, com o avesso da vida que levo, com a face mais indigna da desigualdade social, sem ouvir histórias que não passariam pela cabeça do ficcionista mais criativo, sem conhecer a ralé desprezível que a sociedade finge não existir, a escória humana que compõe a legião de perdedores que um dia imaginou realizar seus anseios pela via do crime, e acabou enjaulada num presídio brasileiro.
Não ler Os Carcereiros seria não ter clara a concepção de que entre o bem e o mal existe uma zona cinzenta semelhante àquela que separa os bons dos maus, os generosos dos egocêntricos. Seria conhecer muito menos do meu país e as grandezas e mesquinharias da sociedade em que vivo, seria ter perdido as demonstrações de solidariedade a que assisti/li, seria ter deixado de ver a que níveis pode chegar o sofrimento, a restrição de espaço, a dor física, a perversidade, a falta de caráter, a violência contra o mais fraco e o desprezo pela vida dos outros. Seria ter uma ideia muito mais rasa da complexidade da alma humana.
Não ler Os Carcereiros é pensar que no Brasil não existe pena de morte, mas a alado Amarelo no Carandiru era ocupada pelos condenados à morte, prisioneiros que, de alguma forma, haviam infringido as leis draconianas do mundo do crime: delatores, dependentes de droga endividados, ladrões que fugiram com o produto do roubo sem dividi-lo com os comparsas, estupradores, traficantes que se apropriaram da droga alheia, conquistadores que se tronaram amantes de mulheres com maridos ou namorados presos.
Não ler Os Carcereiros é não ouvir como os carcereiros enfrentam as adversidades cotidianas, como resolvem seus problemas familiares, as histórias que contam, a descrição das situações nas quais correram risco de perder a vida, os comentários sobre os atos de heroísmo e de perversidade que testemunharam. Homens maduros, com muitos anos de profissão, que falam com tristeza da decadência do Sistema Penitenciário instalada por ocasião do massacre do pavilhão Nove, marco histórico — outubro de 1992 — a partir do qual as facções criminosas adquiriram um poder de mando que eles jamais teriam admitido ter no tempo em que comandavam os presídios.
Não ler Os carcereiros é não conhecer as consequências da tríade de condições fatais para o adultério masculino: cara cheia de cerveja, mulher gostosa provocando e amigo safado dando mau conselho.
Enfim, ler Os Carcereiros é saber que o lema “lugar de bandido é na cadeia” é vazio e demagógico porque não temos prisões suficientes: apenas para reduzir a superlotação atual e retirar os presos detidos em delegacias e cadeias impróprias para funcionar com tal, São Paulo precisaria construir, imediatamente, 93 penitenciárias. E se a PM e a Polícia Civil conseguissem realizar o sonho da sociedade brasileira, prendendo marginais com a eficiência dos policiais americanos — 743 para cada 100 mil habitantes — seria preciso erguer uma penitenciária a cada 21 dias.
Sejam bem-vindos ao sistema carcerário do Brasil.

ANTONIO CARLOS TÓRTORO
ancartor@yahoo.com
www.tortoro.com.br

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