ARTIGO : UMA CENA QUE SE REPETIU APÓS 120 ANOS.

 

Pelo menos cento e vinte anos me separam do personagem Luís Garcia, do romance Iaiá Garcia, de Machado de Assis: um dos momentos determinantes para o desfecho da obra é, justamente, o momento em que Luís resolve revolver e rasgar seus papéis cuidadosamente guardados:

 

“Ao pé da secretaria estava uma vasta cesta, transbordando de papéis; sobre a secretária papéis; papéis na mão de Luís Garcia; outros na mão de estela; alguns esparsos no chão. Era uma liquidação de seis anos. Luís Garcia tinha costume de guardar tudo, cartas, exemplares de jornais em que havia alguma coisa de interesse, apontamentos, simples cópias. De longe em longe inventariava e liquidava o passado. Havia já alguns anos que não fazia a costumada operação. Começara quando supunha ter de deixar o Rio; agora tratava de concluir.

— Virgem Nossa Senhora! disse Iaiá parando à porta. Papai vai ficar afogado em papel.

Luis Garcia não respondeu; voltara os olhos para uma carta que tinha na mão, e que sem dúvida lhe trazia alguma recordação. Leu-a toda; releu alguns trechos; depois fez um gesto de desdém, rasgou-a e deitou os pedaços à cesta.

Na secretária, ao pé deste, havia um maço de coisas que serviam, um maço pequeno; a grande maioria era a dos destroços inúteis. Não é isso mesmo a imagem do passado?Luís Garcia desdobrava às vezes um jornal, avaramente guardado havia anos; duas cruzes ou alguns traços indicavam o trecho que nesse tempo lhe chamara a atenção.  Relia-o agora; buscava o motivo da reserva e sorria. A impressão que comunicara algum interesse ao escrito desaparecera de todo; o escrito era um esqueleto. Também as cartas eram assim. Raras escapavam à destruição; as mais delas era dilaceradas, umas em dois pedaços, — as ínfimas, — outras em trinta, as que podiam ter alguma gravidade”. 

 

No início de março de 2021, em plena pandemia, e sem ter muito o que fazer em casa, resolvi revolver e rasgar papéis arquivados com muito carinho durante os últimos 30 anos: e digitalizei o que, de alguma forma, faz parte de minha história educacional e literária. Todo o material se encontra hoje em meu site www.tortoro.com.br compondo 8 volumes com subtítulo TBT-ACONTECEU (NOTÍCIAS E ARTIGOS): http://www.tortoro.com.br/blog/?p=1207.

Somente o “Bruxo do Cosme Velho”  teve, ao final do século XIX, a capacidade de descrever o que aconteceu em minha residência  durante essa  “liquidação de 30 anos”: “inventariei”,  mas não liquidei meu passado: somente o atirei às nuvens da Internet.

 

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