ARTIGO: O HOMEM QUE RECOLHE FOLHAS SECAS

 

— Mas que pretendes fazer agora?

         —  Morrer.

         — Morrer? Que idéia! Deixa-te disso, Estevão. Não se morre por tão pouco...

 

Machado de Assis – A mão e a luva

 

Todos os dias, ao amanhecer, saindo para meu trabalho, encontro um idoso no meio da rua, levemente curvado, recolhendo folhas secas que, durante a madrugada,  o outono agonizante  atirou ao chão,  pelas mãos do Criador.

Uma a uma, cada folha é recolhida com gestos lentos, mas precisos; ele nem percebe os veículos que passam muito perto dele: está exercendo a missão mais importante de sua vida naquele momento.

Enquanto o mundo enfrenta as dores de uma pandemia, e milhares de almas são transportadas para outras dimensões, o que importa para nosso velho homem é recolher  lágrimas secas que as árvores derramam sobre o asfalto frio e áspero.

Eu também tenho recolhido folhas secas.

Com tempo sobrando compulsoriamente — a Covid 19 retirou-me parte do salário, e assim permitiu-me ter mais tempo para pensar na morte — tomei a decisão de remexer nas minhas lembranças (artigos, recortes de jornais e revistas, poemas ) guardadas meticulosa  e metodicamente  durante os últimos trinta anos: digitalizei todas as minhas “folhas”, não tão secas, e atirei-as à nuvem da Microsoft, imortalizando-as.

Acompanho pela mídia a marcha dos acontecimentos nesse início de 2021, com cara de início de 2020: desemprego, falências de empresas, vacinas que não são seguras, justiça que decepciona a cada decisão, embates políticos, desvio de verbas que deveriam ser usadas na saúde, fome.

Chego a pensar que só me resta preparar o espírito para, pelo menos, dez anos de mais sacrifício: ou morrer.

Então ouço uma voz, ouvida nos gestos conformados e pacientes do personagem real  que recolhe folhas secas: “Morrer ? Que idéia! Deixa-te disso, Antonio Carlos. Não se morre por tão pouco…”

E então, volto à vida.

Engato a quarta marcha, acelero, atravesso ruas e avenidas, confiro imagens no retrovisor, faço curvas um pouco mais violentas, respiro reflexos do sol da manhã, faço uma breve oração: e estaciono no pátio do Colégio.

E dou início a mais um monótono dia, mais um dos mais de quatrocentos dias de pandemia, buscando, no fundo do meu ser, esperanças de dias melhores: churrasco com a família, piscina e sol no Regatas, casos de alunos e pais a serem resolvidos, lendo livros, escrevendo textos e poemas, trocando mensagens com amigos no Whatsapp, postando fotos e vídeos no Instagram.

Ou comprar uma pá de lixo, cabo longo, e ir para a frente de casa recolher folhas secas —  pensando se valeu a pena viver mais de setenta anos de muito trabalho e estudos  —  à espera do inverno externo que se aproxima para fazer companhia ao inverno interno,  espantando os pombos e gatos que tentam caçá-los, ouvindo  a algazarra dos pardais e de periquitos pousados sobre as paralelas de fios elétricos.

Resolvo cantarolar a música de Belchior, Paralelas, ouvindo a voz de Vanusa:

 

“Dentro do carro, sobre o trevo

A cem por hora, ó meu amor

Só tens agora os carinhos do motor

 

E no escritório em que eu trabalho

E fico rico, quanto mais eu multiplico

Diminui o meu amor…

 

Observação: deixei em mãos, para a Sra. Regina, esposa do Sr. Raul (o homem que recolhe folhas secas) uma cópia do artigo acima.  Na mesma tarde ela telefonou para mim, no Colégio Anchieta, agradecendo a “homenagem” feita ao seu esposo. Fiquei muito feliz com o telefonema.

 

 

 

COMENTÁRIOS SOBRE O ARTIGO ACIMA.

 

Caro, caríssimo ACT,

 

Seu texto contém uma tristeza pungente! Reflexo do pessimismo machadiano?

Ver a vida, depois de tantos anos, neste ocaso amarelado em que o “sol” se esconde por trás das amarronzadas folhas de sete-copas espalhadas sobre o negro esburacado do asfalto é de fato muita melancolia que vai no coração dos estêvãos.

Pronto, é, sim, reflexo de Machado! Que também me contaminou.

Compartilho com você o sensabor dos dias iluminados de escuros e aquecidos por um mormaço a nos convidar ao recolhimento, enquanto as hienas se engalfinham na inútil busca da insensatez e da carniça como prato principal.

Mas, amigo, na dura lida de todos nós, que há milhões de anos fomos concebidos e avançamos apesar de tudo, há alguns minutinhos de nossa existência que temos de passar por este mundo.

Ainda bem que no percurso de nossa existência, temos mais feriados que dias úteis, portanto podemos mais viver de deleite que de carregar fardos. O que pesa, é que estamos na fase dos fardos, e não há quem os carregue por nós.

Se até a uva passa, isso também vai passar.

Depois de tudo, nós… Bem, essa é outra história. Que venham os próximos capítulos.

Um abraço fraterno.

 

Waldomiro W. Peixoto

 

ACADEMIAS, ARE-Academia Ribeirão-pretana de Educação, ARL- ACADEMIA RIBEIRÃOPRETANA DE LETRAS, ARTIGOS, LITERATURA